Este artigo foi escrito por Helena Matos, ensaísta, que transcrevo com a devida vénia.
 
 
 Icebergue - O caso BPN era a ponta do  icebergue da corrupção no mundo da banca. No Apito Dourado, só conhecíamos a ponta do  icebergue dos podres do futebol. O processo Casa Pia era a ponta do icebergue  dos abusos sobre menores. A Noite  Branca era a ponta do icebergue do mundo da vida nocturna. O advogado  de Manuel Godinho entendeu por bem dizer que o seu cliente é "a face visível de  um icebergue". Se inventariarmos todas as pontas de icebergue que têm vindo à  tona nos últimos anos, e tendo em conta que a ponta do icebergue representa  apenas dez por cento da massa real do icebergue, teremos de perceber que já não  existe espaço para o país, propriamente dito, e nem sequer para nós, pois está  tudo ocupado pelos icebergues. Paulatina, mas inexoravelmente, os icebergues  ocuparam todo o país e nós fomos ficando com a alma gelada. 
Igualdade - Esta palavra é a mais eficaz  password do nosso mundo. Por  exemplo, os portugueses vão pagar mais impostos, mas, segundo o Governo, não vão  pagar mais impostos. Vão, sim, corrigir desigualdades.
As mais  destravadas leis e decisões tornam-se inquestionáveis se alguém conseguir  apresentá-las como visando combater as desigualdades. Desde o fim das ladies night - pois as borlas para as  mulheres representam uma desigualdade para os homens - até à imposição de quotas  nos lugares de chefias das empresas, tudo serve para justificar ingerências  estatais, desde que em nome da igualdade. De tudo isto resulta invariavelmente  mais desigualdade, facto imediatamente contornado exigindo-se mais legislação  para impor a igualdade. Quando a realidade, de todo em todo, insiste em  irromper, como acontece no caso dos rankings escolares, em que todos os anos  se prova que a escola pública apresenta maus resultados face à privada (e  note-se que no ensino público o custo médio de um aluno é idêntico às  mensalidades pagas no privado), logo surge a acusação de que esses rankings produzem uma "rotulagem  excludente" dos últimos classificados. E claro que ninguém quer ser excludente,  porque a exclusão, nesta gíria, resulta de não se ter insistido o suficiente na  promoção da igualdade. E, assim, cada vez mais pobres e mais desiguais, andamos  num frenesi a promover a igualdade.
Inverdades - A palavra mentira foi banida.  Aliás, as pessoas deixaram de mentir. Quando muito, dizem inverdades, conceito  que está para a verdade como o cinzento-escuro está para o cinzento-claro: é  tudo uma questão de tonalidade do mesmo cinzento. Logo, podemos falar mais  verdade, menos verdade, inverdade. Mas são tudo variantes da verdade. A mentira  e os mentirosos deixaram oficialmente de existir.
Números - A ideia de que os números  representam algo de aferível está ultrapassadíssima. Os números tornaram-se sim  na expressão de estados de alma e não num retrato que se procura o mais exacto  possível. Por exemplo, a última greve da função pública teve uma adesão de  oitenta por cento para os sindicatos e de 13 por cento para o Governo. Por  outras palavras, não se sabe o que fizeram ou não fizeram nesse dia 67 por cento  dos funcionários. Na verdade, podiam ser estas percentagens ou outras quaisquer,  pois os números tornaram-se numa espécie de bibelots que compõem as frases. Ninguém os  confirma e muito menos se averigua o que significam: ao certo, o que quer dizer  o anúncio pelo Governo, em Fevereiro, de que até 2020 serão criados cem mil  postos de trabalho na área das energias renováveis? Isto se nos ativermos ao mês  de Fevereiro, porque, no início de Março, os 100 mil passaram a 120 mil e,  entretanto, já vão em 130 mil. O que de mais parecido alguma vez existiu em  Portugal com esta fantasia numérica são aqueles capítulos da Peregrinação sobre as guerras no Oriente:  dos elefantes aos homens, passando pelas lanças e pelos jarrões, tudo se contava  por milhares. 
A prosseguirmos nesta estranha forma de vida e ainda mais  estranha forma de contar, poremos rapidamente as agências de rating no index, pelas heresias que  produzem sobre esta religião dos milhões que em Portugal substituiu a realidade.  
Pedofilia - Nesta  terminologia, a pedofilia é um crime hediondo quando praticado por sacerdotes  católicos e o encobrimento dos autores destes actos por parte do Vaticano merece  toda a condenação. Se os autores dos actos pedófilos forem políticos, e muito  particularmente políticos que saibam esgrimir com perícia os redondos vocábulos,  deixa de ser adequado usar o termo pedofilia. Estamos perante casos prescritos,  coisas que não interessam ou, no limite, cabalas. Por fim, se for praticada por  artistas, a pedofilia deixa de ser crime, tornando-se num detalhe sem relevância  no percurso sempre notável do dito artista. 
Problemático - Um bairro problemático não  é, como se poderia pensar, um espaço cujas casas têm problemas nos alicerces ou  nos telhados, mas sim um conjunto habitacional que, regra geral, saiu muito mais  caro do que o previsto, foi inaugurado por detentores de cargos políticos que  discursaram sobre o esforço necessário à concretização daquele projecto e cujos  residentes tiveram acesso a essas casas em condições muito favoráveis.
Um  bairro torna-se problemático quando, após a festa da inauguração, volta a ser  notícia por ali se tolerarem situações que nos outros bairros e ruas deste país  são consideradas crime. Assistentes sociais, ONG e muitos gabinetes municipais  fazem o enquadramento nestes bairros e as soluções propostas passam sempre por  pedir mais assistentes sociais, mais dinheiro para as ONG e mais gabinetes  municipais agora dotados da novel figura do mediador cultural, para assim  continuarem a fazer o acompanhamento dos bairros problemáticos, que, por sua  vez, se desdobram em escolas problemáticas e famílias problemáticas. Política e  profissionalmente, o problemático é um território de grandes oportunidades para  gente com ambições.
Tecnológico  - Ninguém conseguiu explicar o interesse pedagógico da distribuição  dos Magalhães na escola primária ou, noutro campo etário, a utilidade de  computadores nas mesa dos deputados no plenário da AR. A tecnologia pela  tecnologia é como os óculos de sol que umas pessoas espetam na cabeça nos dias  mais nebulosos: não se sabe para que servem, mas dão estilo.